Entrevista com Daniel Goldin – Revista Emília

Posted on 8 de setembro de 2012


Revista Emília
Entrevista / Daniel Goldin
Literatura infantojuvenil / Reflexões / Livros e teorias
Maio de 2012

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Daniel Goldin
Para os livros, todos os dias
POR THAIS CARAMICO

Basta uma manhã para que palavras não escritas já não saiam mais da memória. O encontro com o mexicano Daniel Goldin em um café na cidade de Bolonha, um dia antes da feira de 2012 começar, foi marcante. O escritor, ensaísta e editor conhece a cidade como poucos. Domina suas esquinas e arcos da mesma forma que apresenta os caminhos da literatura infantil e juvenil. Foi uma longa conversa, assunto que ainda rendeu uma troca de e-mails mais tarde, para a entrevista que você lê agora.

Pensador, estudioso e teórico, Goldin é também criador do projeto editorial para crianças e jovens do Fundo de Cultura e membro da equipe que elaborou a pesquisa nacional sobre leitura, do Ministério da Cultura do México, em 2006.

Sua obra Os Dias e os Livros, publicada há seis anos, acaba de chegar ao Brasil pela editora Pulo do Gato. Com ela, também está marcada sua primeira visita ao país, onde participa do seminário Conversas ao Pé da Página no dia 15 de junho.

 

Entrevista - Daniel Goldin

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Thais Caramico
 – Vamos começar falando de Os dias e os livros*, que depois de seis anos da publicação no México, chega ao Brasil pela editora Pulo do Gato. Aparentemente, trata-se de um livro sobre livros. Mas vai além disso. O que está por trás do título e como essa sua obra faz parte da sua vida?

Daniel Goldin – Você tem razão, é outra coisa. Talvez porque minha relação com os livros seja, de alguma forma, menos clara que a da maioria dos autores que escrevem livros sobre livros. Isto porque para mim os livros me interessam na medida que são, a um tempo, testemunhos e cenários dos desejos, das lutas e dos conflitos dos homens. Um deles é o conflito entre a percepção da própria fugacidade e o desejo de permanência.
Desde a suas origens mais remotas, a palavra escrita tentou vencer a inexorável fuga do tempo. A escrita é um testemunho de nossa rebeldia contra a fugacidade da vida, de nossa luta contra a morte e a falta de sentido. Entre outras razões, escrevemos para permanecer, para estar e exercer nosso poder onde, fisicamente, não podemos estar.
Uma vez que a palavra escrita permanece enquanto que as que pronunciamos são levadas pelo vento, os seres humanos tendem a ter a ilusão de que a escrita, e por conseguinte o livro, é uma preservação do sentido. Contudo, o sentido que podemos encontrar nos livros sempre será contingente. Ou seja, depende das circunstâncias concretas de nosso encontro com os livros e com as palavras que eles encerram. Por isso, em muitas ocasiões um mesmo texto nos diz algo urgente e iluminador e depois não diz mais nada. Este conflito é um dos temas que cruzam secretamente todo meu livro. E, por isso, o título: Os dias e os livros.

 

TC – E por que o subtítulo “divagações em torno da hospitalidade da leitura”. Hospitalidade é uma palavra associada à leitura?

DG – Antes que à leitura, a hospitalidade está ligada à palavra “estrangeiro”, aquele estranho que chega a um lugar e procura refúgio. Em algumas culturas antigas, o dever da hospitalidade se referia à obrigação de quem tinha casa e comida compartilhá-las com o desconhecido que batia à sua porta.
Relembrar esse dever é algo que todos os atores devem fazer: autores, editores e designers gráficos, mas também professores, promotores de leitura, bibliotecários ou livreiros. A pergunta é: como fazer? Parece-me que existem duas condições básicas: a primeira é lembrar que não somos donos da língua, que é a casa onde recebemos o outro, e que, apesar disso, temos o dever de conservá-la, mantê-la limpa e arejada.
A outra é deixar um espaço aberto para que quem chegue ao livro ou ao texto possa se sentir confortável e desenvolver-se, crescer sendo outro, diferente de si mesmo e de nós. Do ponto de vista do criador ou do editor, isso se manifesta tanto no objeto físico, como na disposição do texto, e inclusive, na relação entre o que se diz e o que se mantém em silêncio em um texto. Do ponto de vista do professor, opor-se à toda a violência e à vontade insensata de sempre ter razão, de impor uma leitura.

 

TC – Mas em sua obra, você também associa o livro à paternidade. Qual paralelo existe entre os livros e a paternidade ou maternidade, já que o tema está presente ali?

DG – Tal como abordo no livro, a paternidade é outra forma de hospitalidade, uma gama de experiências de leitura (e escrita) e, novamente, uma manifestação do conflito entre a fugacidade e a permanência. A chegada de um filho anuncia – de uma forma cruel e ao mesmo tempo doce – que vamos morrer e que algo nosso vai permanecer, ainda que seja em gestos ou palavras ou em algo que ninguém reconheça. A chegada de um filho aflora lembranças e nos permite reler nossa própria vida. Submete-nos ao olhar de outro que nos importa radicalmente, e que habitualmente recordará as coisas de uma forma muito diferente da que havíamos imaginado.
Por isso, no livro, digo que quando alguém vai atrás do filho descobre os pais, e quando vai atrás dos pais se descobre no meio de um caminho que se submerge no esquecimento.
Penso que a experiência da leitura é algo muito parecido. Ao ler, submergimos em um rio antigo que se perde no esquecimento e que, contudo, é sempre fresco e atual. E esse rio se projeta ao mundo e faz com que você se sinta arraigado nele.
Ler ou fazer que um filho leia é estimular sua capacidade de ser outro, de ler-se nesse devir e de arraigar-se no mundo. É outra forma de realizar o dever da hospitalidade: dar-lhe as boas-vindas num mundo onde nós mesmos somos estranhos, dar-lhe alimento para crescer e, portanto, estimular sua liberdade.

 

TC – Quando criança, o que o fascinava no livro? E hoje, o que no livro o fascina?

DG – Na vida de todos nós, os livros nos causam feridas, cicatrizes e carícias. Desde muito cedo, mais do que me fascinar, os livros me intrigam, despertam minha curiosidade e desejo. Mas também frustração (por não poder lê-los ou não me lembrar deles) e, inclusive, raiva. Por exemplo, quando percebia que, para o meu pai, os livros eram mais interessantes do que eu.
Hoje me fascina o poder dos livros. Todos os dias fico surpreso de como uns objetos aparentemente tão simples têm a capacidade de instaurar outro(s) tempo(s), e que somente ao abri-los, propiciam outro espaço que faz com que o mundo seja mais habitável.

 

TC – No início da obra traduzida para o português, você diz que muita coisa mudou durante estes seis anos. O que mudou, o que isso representa e como você enxerga essa mudança?

DG – A soma de acontecimentos que hoje consideramos relevantes e que ocorreram nesses seis anos é muito grande e pode carecer de sentido em poucos anos. O auge do Twitter e do Facebook, por exemplo: eles chegaram para ficar ou serão substituídos? Não sabemos. Mas podemos ter certeza de que a aceleração e a desmaterialização cada dia se acentuam mais.
São duas faces de um mesmo processo vinculado ao formidável desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação. Isso mudou todos os campos da nossa vida, os públicos e os privados, a política, a economia, o comércio. Também gerou uma crescente incerteza frente ao futuro. Isso certamente afeta de maneira essencial o mundo do livro e, para alguns, coloca em perigo a sua viabilidade futura.
Outros insistem que o livro permanecerá, quem sabe. O que está claro é que o livro perdeu o lugar privilegiado que tinha como um instrumento para entender e participar do mundo.
Desse ângulo, podemos dizer que um dos paradoxos de nosso presente em relação à leitura é que a multiplicação de leitores e escritores contribuiu para a fragilização do livro (que é uma forma de organizar os textos e de lhes dar racionalidade) como mecanismo para o mundo se fazer inteligível.
Diante de uma realidade cada dia mais complexa, os livros perdem vigência demasiado rápido ou estão condenados a desaparecer, pois devem dar lugar a outros, nas estantes das livrarias, e inclusive nos estudos. A pergunta é: como abordar a complexidade de nosso entorno e tratar de construir um mundo mais habitável, se tudo se tornou tão instável com textos cada vez mais instáveis e menos complexos? É um desafio para toda pessoa verdadeiramente comprometida com a educação e a democracia.

 

TC – A tecnologia, na sua opinião, favorece em algum ponto a literatura, a leitura e os leitores?

DG – Uma resposta otimista a essa pergunta é lembrar que a literatura não depende da tecnologia, mas sim dos desejos, angústias, dúvidas dos humanos. E que, portanto, sempre haverá literatura, ou seja, um território no qual os homens usam a imaginação, a sensibilidade e o conhecimento para questionar o real e habitar o mundo. A necessidade de uma literatura escrita em celulares é uma prova de que o desenvolvimento tecnológico não anula a necessidade do imaginário.
Uma resposta pessimista teria de reconhecer que muito da literatura que consideramos valiosa só sobreviverá em uma espécie de sigilo, à maneira do que foram as catacumbas onde se preservaram, em épocas de penúria, algumas religiões e saberes. O mesmo se pode dizer dos leitores: a tecnologia não só favorece o aparecimento de mais leitores, como também nos obriga a ler e a escrever em espaços onde nunca tínhamos imaginado. É só sair na rua para ver as práticas de leitura e escrita dos usuários de celular. Hoje, os jovens preferem mandar mensagens a falar ao telefone.
Mas o certo é que o leitor de hoje não tem nada a ver com o modelo de leitor de um século atrás. Saber que cada vez mais será menos frequente esse tratamento intenso e profundo com textos fundamentais é algo que só podemos lamentar.

 

TC – E o mercado editorial sabe o que fazer com a tecnologia?

DG – Como o que aconteceu antes com a indústria da música, o mundo do livro está muito desconcertado. O desenvolvimento tecnológico abriu infinitas facilidades para a criação e a circulação dos livros. Mas, o aparente universo ilimitado de possibilidades diariamente se confronta com a dificuldade de dar valor – tanto econômico quanto pessoal – aos livros.
Em grande parte, isso se deve ao fato de que hoje, na indústria editorial, muitos dos atores mais relevantes não estão diretamente ligados à cadeia tradicional do livro ao leitor, e, de fato com frequência, fazem de tudo para quebrá-la. Começaram prescindindo do livreiro e, ainda que se insista em que o autor ou o editor é essencial e valioso, o certo é que no universo tecnológico os únicos que podem assegurar que alguém lhes pague (isto é que se lhes atribua valor) são os donos dos hard ou software. O trabalho de todos os outros pode ser – legal ou ilegalmente – gratuito.
No plano pessoal acontece algo parecido: o desenvolvimento tecnológico amplia nossas possibilidades de consumo cultural, mas na vida cotidiana, dispomos de menos tempo livre para aproveitar essa oferta. Temo que, ao fazer um balanço, constatarmos que a cultura perdeu valor ainda que cada vez mais ocupe uma percentual mais importante no PIB.

 

TC – Aliás, o mercado editorial sabe o que as crianças e os jovens de hoje querem ler? E os pais? E os professores?

DG – Ao menos como as concebo, a relação do editor ou criador com o público é dinâmica: o editor inventa seu leitor, não responde a seus desejos, faz com que ele descubra que desejava algo que não sabia nomear.
Nesse sentido, acredito que a verdadeira criação vai de inconsciente a inconsciente. O mesmo podia-se dizer do ensino: o professor transmite seu amor ao conhecimento na medida em que para ele o que ele mesmo está ensinando, é algo minimamente desconhecido.

 

TC – No mundo de hoje, qual o papel da leitura?

DG – No mundo de hoje precisamos ler para quase tudo: para ensinar, aprender, trabalhar, consumir, comunicar-nos, divertir-nos. Quando falamos “A Leitura Hoje” não ajudamos a esclarecer o complexo lugar que tem a palavra escrita ao nosso redor. Sem dúvida, já não podemos contrapô-la à oralidade, e devemos também pensá-la numa relação estreita e muito rica com as imagens. Por isso digo que, no lugar de reproduzir os discursos sobre a importância da leitura, é necessário propiciar espaços para experimentá-la e construir pensamento sobre e com palavras escritas.

 

TC – Somos piores leitores hoje? Você disse, (durante nosso café) em Bolonha, que existe um problema grave com a leitura, que as pessoas não estão sabendo ler, ou o que ler, como ler. Explique isso, por favor.

DG – Com frequência, tenho a impressão de que parte da desastrosa situação que vivemos na atualidade é consequência de seus principais atores, que costumam tomar decisões, sem ler com atenção e profundidade os acontecimentos, dados, livros. Acontece a nós todos: quantas vezes ao dia nos damos conta de que, antes de responder, nossos interlocutores não leram bem as cinco linhas do e-mail que lhes enviamos? Quantos professores dão notas aos trabalhos sem ler e corrigir os textos? Ou pior ainda: quantas vezes os alunos respondem mal, porque não leram bem as perguntas ou não estão capacitados para entendê-las?
Sem dúvida, estaríamos habitando um mundo muito diferente se em cada um de nossos espaços tivéssemos uma relação de maior exigência com a leitura. Mais cuidado com a leitura obriga mais cuidado com a escrita e na tomada de decisões. Já é hora de deixar de lado a insistência de que se lê pouco e de incentivar a que se leia mais, e de estimular uma leitura mais atenta e rigorosa. Essa é uma das melhores maneiras de resistir frente à irracionalidade, ao cinismo, à estupidez e à banalidade que nos rodeiam. E é algo que cada professor pode fazer com seus alunos, desde muito pequenos.

 

TC – A relação entre o corpo e o pensamento tem a ver com isso?

DG – A relação do corpo com a leitura, a escrita e a construção de sentido é um dos terrenos menos estudados no campo da cultura, da educação e da política. Dá a impressão de que estamos num território sem corpos, sem objetos, de puras trocas espirituais, para não dizer metafísicas.
Por isso, faz anos já que me parece fundamental recordar que sempre lemos em objetos que tem peso, cor, textura que se fabricam por meio de procedimentos mais ou menos difíceis, que se trocam e armazenam e que têm valor de mercado. E que a forma como incorporamos as palavras escritas nas nossas vidas está determinada pelo corpo dos objetos: a argila, as peles, os papiros, as tabuletas de cera, o papel de pano são alguns dos materiais do corpo dos livros. E cada um exigia condições especiais para que se pudesse escrever neles, o que possibilitava ou não sua reprodução e circulação.
Por outro lado, a disposição dos textos teve também uma longa história que hoje se recorda ou se conhece pouco. Poucos sabem, por exemplo, que a maior parte dos textos gregos fundamentais para a cultura ocidental não foram escritos como livros, mas em rolos redigidos em escrita contínua, sem espaço entre as palavras, que não se diferenciavam, não se representavam em signos de pontuação. E, além disso, frequentemente em bustrophedom, isto é, da esquerda para a direita e a linha de baixo da direita para a esquerda.
De tal modo, as palavras só se tornavam compreensíveis se lidas em voz alta. Não havia títulos, páginas, divisão entre parágrafos. A interação com os textos era diametralmente diferente da que possibilitam os livros, com seus índices, capítulos e parágrafos. Os rolos obrigavam a ler com as mãos em cima deles, de tal sorte que era difícil escrever enquanto se lia, algo que hoje nem se discute.
Mas o corpo também está presente na necessidade de espaço que estabelecem os objetos. Temos que acomodá-los, movê-los, cuidar deles. Podem ser muito bonitos, podem ser considerados tesouros ou serem insignificantes. Temos que nos deslocar para comprá-los, o que nos obriga a interagir. Tudo isso é o trama sob a qual construímos sentido durante milhares de anos a partir da palavra escrita.
Estamos, hoje, diante de uma dupla transformação. De um lado, a partir do desenvolvimento tecnológico, assistimos a uma nova forma de circulação dos textos. Deixou-se de associar um texto com um objeto: este permanece e o que mudam são os textos. Hoje lemos na mesma tela (do computador, doipod ou do telefone) todos os tipos de textos: mensagens, anúncios, livros, cartas, jornais, sem necessidade de sair do lugar. Apenas mexendo um dedo. E isto afeta a forma como os textos se incorporam nas nossas vidas.
Por outro lado, justo quando os textos se desmaterializam, muitas das relações que estabelecemos hoje, tanto no mundo do trabalho quanto no pessoal, se dão através de trocas escritas, sem que necessariamente ocorra um encontro pessoal, que supõe uma comunicação de gestos inconscientes, de tons de voz, de cheiros, etc. Pensemos na educação, o quanto ela depende do tom, do intercâmbio de olhares, da percepção do outro.
Quando chamo a atenção sobre a importância de pesquisar as relações do corpo, a construção de sentido e o livro, me refiro justamente à recobrar a consciência de que tudo o que construímos com a palavra escrita nos 10.000 anos de história, desde que se inventou a escrita, só se pode entender se compreendemos a dimensão material dos objetos escritos (tabuletas, rolo, códice, livros, revistas, cadernos ou cartas) e a complexa trama de relações que estabelecíamos com esses objetos.
Também estou pensando nas diferentes formas em que ao longo da história nos aproximamos corporalmente da escrita. A leitura em voz alta, o sussurro, a leitura noturna à luz de velas, em cadeiras ou na cama, com as mãos livres ou obrigadas a segurar um rolo ou um livro. São esses gestos os que podem iluminar as formas nas quais construímos sentido.

 

TC – São as mudanças muito aceleradas atuais que não nos permitem refletir mais do que fazemos?

DG – Refletir supõe um conjunto de atividades relacionadas com o sufixo “re”: re-cordar, re-ler, re-passar. Em nosso tempo acelerado e atento à novidade, todas essas atividades significam uma perda. O paradoxo é que justo porque não refletimos, relemos ou recordamos, estamos nos condenando  a repetir compulsivamente. O remake é a maior novidade.

 

TC – Qual o papel de um editor de livros para crianças e jovens?

DG – Pessoalmente, sempre assumi meu papel de editor como um promotor de diálogos: alguém que contribui para que a criança e o jovem deixe de ser considerado um infante, um ser sem palavras. Às vezes imagino que os livros são como cavalos de Tróia, que permitem que entrem, nas classes ou nas casas, a um exército que faz com que aconteçam coisas nos lugares mais insuspeitos.
Outra coisa que sempre me preocupou foi oferecer aos adultos uma possibilidade de se tornarem crianças. A maior parte dos adultos de hoje nunca tiveram livros como os que agora publicamos. Acredito que também seja importante aproximá-lo dessa possibilidade de viver uma infância paralela.

 

TC –  Como editor, você lançou na América Latina uma forma de se ver os livros para crianças e jovens. Essa forma é a mesma ou ela tem mudado com o passar dos anos?

DG – Queria começar mencionando duas coisas muito positivas. Que graças a Harry Potter e outras sagas, descobrimos que as crianças gostam de ler de 500 a 600 páginas, sem diferença de idade. Isto contradiz radicalmente a ideia de que as crianças de hoje não lêem. Também vivemos o surgimento de um gênero especifico de literatura para crianças e jovens que é o álbum, que é um gênero próprio desta literatura.

 

TC – Como responsável editorial da Fondo de Cultura Econômica (FCE), você fez uma coleção sobre leitura, que é uma das principais referências no assunto. O que significou para você organizar essa coleção? Quanto tempo durou esse trabalho?

DG – O FCE foi uma das instituições editoriais mais importantes no mundo do livro. Poucos sabem que os fundadores do FCE não estavam interessados em criar uma editorial, mas em formar economistas, daí este nome. Para esses homens, os livros importavam na medida em que eram necessários para construir uma sociedade mais justa e desenvolvida.
Para isso era necessário educar economistas e, portanto, livros de texto. Como nenhuma editora espanhola quis publicar esses livros porque não havia mercado, eles fundaram uma editora. Me identifico com Daniel Cossio Villegas, o fundador do Fundo de Cultura, na ideia de que os livros são, sobretudo, importantes pelos efeitos que podem produzir nos espaços público (e não em seu amor pelos economistas) e no privado.
Quando iniciei a Coleção Espacios para la lectura, pensei que era da maior importância discutir intelectualmente, com instrumentos sólidos, o campo de formação de leitores. Isso significava, em princípio, abrir perguntas a partir de muitas disciplinas diferentes: a história, a sociologia, a antropologia, a crítica literária, a pedagogia ou a didática. Essa coleção foi importante porque acentuou as perguntas e se distanciou da repetição das consignas e das respostas mais triviais.
Trabalhei 17 anos no Fundo de Cultura enquanto senti que se tratava de uma instituição pública em que eu podia fazer algo que cuidasse do interesse público, com liberdade e respeito. Hoje continuo meu trabalho na Editora Oceano, uma editora privada. E aqui também iniciei uma coleção, que se chamaÁgora. A vocação é a mesma: discutir publicamente as coisas que correspondem ao interesse público no campo da educação e da formação de leitores.
Atualmente, na maior parte do mundo, estamos vivendo um declínio das instituições públicas. Por isso, me parece que fazer vingar um projeto a partir de uma instituição privada adquire um significado muito importante. O rigor intelectual é o mesmo, mas agora é o próprio público que dá o suporte.

 

TC – Como você vê a importância dessa coleção na prática, dentro do seu País, e entre os leitores que tiveram a oportunidade de ter contato com ela?

DG – Não sou eu quem melhor pode valorizar isto. Em qualquer caso, acredito que seria muito ingênuo pensar que as práticas educativas se transformam com a publicação de um livro ou de uma coleção. Um editor põe no espaço público materiais que alimentam ou organizam uma discussão. Os leitores se apropriam disso, trabalham com isso, discutem com eles e a partir deles. Novamente, são os dias e os livros. As formas como esses objetos tão estranhos se inserem em nosso cotidiano.

 

TC – Qual foi  seu investimento na literatura estrangeira dentro da América Latina?

DG – Nunca me importei muito, nem como leitor nem como editor, com a nacionalidade dos autores. Publico e leio o que me parece que vale a pena. O que me diz ou creio que pode dizer algo aos outros. O que me faz sentir menos estrangeiro ou suponho que a outros permitirá habitar melhor o mundo em que vivem.

 

TC – Que autor você gostaria de publicar no México hoje?

DG – Publiquei muitos autores que admiro (e não foram poucos os que se transformaram em amigos). Mas há três grandes que não pude publicar e adoraria tê-lo feito: Maurice Sendak, Katherine Paterson, Lygia Bojunga. São três peças fundamentais da literatura infantil e juvenil contemporânea. Hoje não encontro muitos autores desse calibre, ou já os estou publicando.

 

TC – A formação de futuros leitores é algo que te preocupa? De que maneira você está envolvido com este tema atualmente?

DG – Me preocupa o mundo, a justiça, a democracia, a liberdade. A capacidade de aproveitar o silêncio e de apreciar a música. De dialogar e de gozar da solidão. Se formar leitores tem a ver com isso, então me interesso por formar leitores. A formação de leitores em si não me importa.

 

TC – Como é pensar hoje nessa formação? O que fazer, para aonde ir?

DG – Tal como eu entendo, a formação de leitores tem menos a ver com aonde se quer ir do que com compreender onde estamos parados. Se você tem como foco chegar a um lugar sem entender onde você está e o que te move, você está condenado ao fracasso.
Por onde começar? O lugar onde se começa a formação de leitores e onde tem sentido é sempre esse: o chão onde você pisa.
Uma das coisas mais importantes que devemos fazer quando formamos alguém como leitor é fazê-lo ver que esse lugar é imensamente mais rico e complexo do que ele supunha. Por outro lado, formar leitores tem outro sentido que o de fazer com que se veja que a vida é mais rica e diversa do que havíamos pensado?

 

TC – Como um pensador da literatura para crianças e jovens, o que você teria a dizer para os editores da América Latina? E especificamente para o Brasil?

DG – Acredito que o mais importante é proteger a cadeia do livro até o leitor. Se esta cadeia quebrar, todos perdemos. Outra coisa é olhar a longo prazo.

 

TC – Você fará uma visita agora ao país, pela primeira vez, convidado para participar do seminário Conversas ao Pé da Página. Está ansioso? Alguma vontade muito particular que pretende realizar no Brasil?

DG – Fui convidado em outras duas ocasiões, mas por alguma razão sempre adiei essa viagem. Talvez por que intuísse que o Brasil não ia me deixar indiferente e não me sentia preparado para receber esse formidável choque de ideias, energia, calor. E fui me preparando. Estou muito contente de ver a situação do Brasil hoje, traçando uma rota própria, conciliando coisas que em outros lugares parecem irreconciliáveis.

 

TC – Sobre o que será sua palestra no Conversas ao Pé da Página?

DG – Sobre os desafios da leitura. Também darei uma oficina sobre o corpo, o livro e a construção de sentido e tentarei mostrar os desafios do presente a partir da análise de alguns momentos da história do livro e da leitura.

 

TC – E o que imagina ouvir do público?

DG – Na verdade, ainda não consigo imaginar nada. Tenho muita curiosidade e muita inquietação.

 

TC – Para concluir: o que você vai levar para o Brasil e o que espera trazer de lá?

DG – Eu vou levar minhas perguntas, minha capacidade de escutar, minhas ideias. E um de meus quatro filhos, Pablo. Ele está estudando arquitetura e sempre foi fascinado pelo Brasil. Para mim, é importante a companhia dele.
Do Brasil, espero trazer ideias novas, energia, calor, otimismo. Amizades. E um Daniel Goldin diferente do que conheci até agora.

 

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